Domingo, 5 de novembro de 2017
Pesquisa comprova melhoras
Por Leandro Barbosa-The Intercept Brasil/Foto: Polícia Federal
e Portal ContextoExato
Cheguei à casa do Benício, às 9h, no dia 11 de outubro, com o desafio
de entender a sua linguagem e a sua maneira de ver o mundo para contar
sua história. As melhores lembranças desse dia são o sorriso dele e os
curtos passeios que fizemos, de mãos dadas.
Essas demonstrações de afeto são conquistas recentes do menino de 9
anos, autista e portador da Síndrome de Dravet – doença rara causada por
uma mutação genética que gera um quadro de epilepsia grave. E só foram
possíveis graças ao esforço da sua família e ao uso do canabidiol (CBD),
extraído da cannabis, planta popularmente conhecida como maconha.
Benício teve sua primeira convulsão aos 5 meses. Foram 40 minutos sem
que ninguém soubesse dizer o motivo dos espasmos, lutando contra o tempo
para que o bebê sobrevivesse. Desse dia até os seus 6 anos, foram 48
internações.
Benício, de 9 anos, é autista e portador da Síndrome de Dravet: uso do
canabidiol reduziu drasticamente quantidade de internações.
Com 2 anos, o menino dizia “um, dois e já”, “mamãe” e “papai”. Meses
mais tarde, Beni, como a sua família o chama, se calou. Sua linguagem
passou a ser apenas de gestos que seu pai, Leandro Ramires, teve que
aprender. É ele quem tem a guarda do menino.
Leandro conta que um momento marcante nessa trajetória de idas e vindas
aos hospitais de Belo Horizonte foi em um dia de intensas crises
epilépticas que levaram Beni a ter uma parada cardiorrespiratória de 12
minutos, deixando o garoto em coma por quase duas semanas.
“Foi quando ele recebeu sua primeira extrema-unção, por ter ficado 12
dias sem responder a comando algum. O hospital me chamou para saber se
eu gostaria de doar os órgãos. Ele recebeu a extrema-unção de manhã. À
tarde, quando ele foi fazer o eletro[encefalograma] para saber se de
fato ele estava vivo ou não, acordou como se nada tivesse acontecido.
Ele continuou passando mal, chegando a tomar 25 comprimidos por dia.
Mas, ainda assim, esse dia foi incrível!”, lembra o pai.
Leandro é médico cirurgião oncológico e mastologista, o que ele
considera ser um dos motivos do filho ainda estar vivo depois de tantas
internações. Ele conta que, durante o carnaval de 2012, Benício estava
internado. Ligaram para Leandro porque não havia médico para puncionar
um acesso venoso central no menino.
“Eu estava muito preocupado, porque ele estava em crise, e eles me
ligaram perguntando se eu conhecia algum cirurgião vascular. No fim das
contas, não tinha ninguém pra pegar a veia. Eu mesmo fui pra lá e peguei
uma jugular dele, numa das cenas médicas mais complicadas da minha
vida. Depois que o acesso pegou, foi dada a medicação, parou a crise,
ele foi entubado e entrou no respirador. Eu fui para o banheiro do
hospital. Nossa! Eu tive que pedir outra roupa para ir embora. A tensão
era tanta que eu chorava, vomitava, fazia tudo ao mesmo tempo”, conta.
Nos últimos 3 anos, só uma internação
Este cenário levou Leandro a buscar alternativas para amenizar o
sofrimento do filho. Até chegar à maconha. O uso de substâncias
derivadas da erva diminuiu drasticamente as internações: nos últimos
três anos, Benício foi internado apenas uma vez, durante seis horas.
No início, as dificuldades para adquirir o canabidiol fizeram com que
Leandro e muitas famílias no Brasil importassem o medicamento de maneira
ilegal. Na época, a legislação não permitia o uso e a importação,
tornando crime a aquisição de um remédio derivado de uma planta proibida
no país.
A síndrome do Benício fez de seu pai um militante da causa canábica.
Com a ajuda de outras pessoas que vivem situações semelhantes, o médico
criou a Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal –
AMA+ME, em dezembro de 2014. Os principais objetivos são lutar pela
mudança da atual política de drogas do país, implementar o cultivo
coletivo para pacientes e produzir estudos científicos.
Em julho de 2016, a organização, em parceria com a empresa americana
CBDRx, inaugurou no Brasil um estudo para entender melhor os efeitos do
canabidiol sobre os sintomas provocados pelo Transtorno do Espectro
Autista (TEA).
A empresa fica em uma fazenda no estado americano do Colorado, e
desenvolve produtos medicinais a partir da Cannabis Sativa. Através da
clonagem de plantas, a CBDRx desenvolveu uma espécie de maconha com alto
índice de canabinóides e baixo teor de THC (tetra-hidrocanabinol) –
princípio psicoativo da maconha. Atualmente, o custo do frasco do
extrato produzido por eles – 60 cápsulas de 50 mg de canabidiol – é de
300 dólares, aproximadamente R$ 1 mil, sem contar os valores do frete.
Pesquisa comprova melhoras
A pesquisa foi feita com 18 crianças. Quinze permaneceram até o fim do
estudo: 13 do Pará, um de Brasília e Benício, de Belo Horizonte. Três
tiveram o tratamento suspenso antes do primeiro mês, devido ao aumento
da frequência e intensidade de estereotipias (comportamentos
repetitivos), de crise psicocomportamentais e de distúrbios do sono,
conforme apontam os resultados finais do estudo, ao qual The Intercept
Brasil teve acesso exclusivo.
Durante nove meses, a empresa doou o óleo de cannabis para as crianças
participantes. As remessas foram enviadas aos pais, que tinham a
responsabilidade de observar os efeitos da substância e as reações de
seus filhos, que também foram acompanhados pelos médicos parceiros da
organização.
A partir do registro mensal das características e resultados da
evolução de cada paciente, foi possível observar que 76,5% apresentaram
melhora na hiperatividade e no déficit de atenção e concentração. Para
72,2%, houve redução dos comportamentos repetitivos e/ou agressivos. E
ainda: em 69,2%, observou-se evolução no desenvolvimento motor; 50%
ganharam mais autonomia na vida diária; 61,1% passaram a interagir e a
se comunicar mais com as pessoas e o ambiente à sua volta; 72,2%
apresentaram alguma evolução nos processos de aprendizagem; o sono de
85,7% melhorou; 64,3% conseguiram parar ou reduzir a medicação
neuropsiquiátrica.
E o dado mais impressionante: 100% dos pacientes alcançaram um controle
sustentável das convulsões – o que significa que o número de crises
diminuiu em pelo menos 50% (em alguns casos, os pacientes simplesmente
não tiveram mais nenhuma convulsão).
Como presidente da AMA+ME, Leandro afirma que “há necessidade premente
de estimular estudos clínicos, científicos e metodológicos para se ter
total noção desse benefício e quantificá-lo”.
“Essas crianças tiveram resultados incríveis que hoje a gente tem dificuldade de manter”
Ele ainda explica que não existe um tratamento específico para o
autismo: “O que precisa haver com o paciente são medidas
socioeducativas, comportamentais e educacionais”. Os medicamentos tratam
apenas os sintomas derivados do transtorno de que sofrem Benício e as
outras 14 crianças. “O importante é que essas manifestações
neuropsíquicas melhoram muito com a suplementação do extrato de cannabis
rico em canabidiol. Essas crianças tiveram resultados incríveis que
hoje a gente tem dificuldade de manter, porque isso se restringe a
dinheiro”, lamenta.
Para Cassio Eduardo Ismael, representante da CBDRx no Brasil, os
efeitos obtidos pelo estudo foram tão impressionantes que ele não
descarta a possibilidade de a empresa investir em outras pesquisas
similares no país. “Ainda tem muito a ser estudado sobre os efeitos do
canabidiol, confesso que houve resultados que surpreenderam. Tem um caso
de uma criança que voltou a falar!”, exemplifica.
Tratamentos sob ameaça
O estudo e, consequentemente, as doações de óleo de cannabis terminaram
em junho deste ano. Com isso, os 13 pacientes do Pará estão prestes a
interromper o tratamento.
As famílias paraenses chegaram a receber doações de produtores
nacionais do óleo após o fim da pesquisa, mas agora o produto está
acabando, e a condição financeira delas não permite dar continuidade ao
tratamento. Atualmente, apenas uma dessas famílias conseguiu apoio
jurídico gratuito, a fim de solicitar que o Estado forneça o CBD.
Leandro explica que o custo médio de um tratamento com extrato de
cannabis rico em CBD pode variar de R$ 1.020,00 a mais de R$ 21 mil por
mês, dependendo da quantidade utilizada. Além disso, ele afirma a
necessidade de um acompanhamento de profissionais da saúde que possa
garantir o desenvolvimento motor e cognitivo das crianças.
“O custo com terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, fonoaudiólogos e
demais especialidades, vai de R$ 4 mil a R$ 10 mil por mês. Isso é
inacessível para quem depende do SUS e reside em áreas de risco social
ou distantes de grandes centros. É importante dizer, no tocante a isso,
que meu filho é privilegiado”, explica Leandro. É ele quem arca com
todos os gastos terapêuticos de Beni.
Dificuldades na rede pública
Como o canabidiol não é considerado oficialmente um remédio, ele não
faz parte da listagem de farmácia terapêutica. Sendo assim, o Sistema
Único de Saúde (SUS) não é obrigado a fornecê-lo, embora algumas
famílias tenham conquistado esse direito na justiça.
Apenas o Distrito Federal tem o canabidiol como remédio a ser fornecido
pela rede pública para pacientes com epilepsia. Embora a legislação,
aprovada em 2015, tenha surgido como uma possível solução para as
famílias sem condições de arcar com o óleo de cannabis, na prática, não
tem sido uma via fácil.
Atualmente, com a crise política e financeira do país, o governo do
Distrito Federal alega não ter dinheiro para fornecer o produto. O
analista de licitação, Fábio Virgulino, pai de Sabrina Filgueira, de 11
anos, criança diagnosticada com autismo e com uma síndrome que causa
epilepsia refratária e dificuldades na coordenação motora, é um dos que
penam com a falta do medicamento.
Sabrina passou a fazer uso do canabidiol em fevereiro de 2015. Em maio
do mesmo ano, a família foi a primeira a conseguir na justiça que o
governo do Distrito Federal fornecesse o CBD. Mas o produto só foi
chegar à casa de Sabrina um ano depois — e isso, conforme conta Fábio,
só porque um juiz “perdeu a paciência” com o governo e bloqueou o
dinheiro para que a família pudesse comprar diretamente o produto por
seis meses.
O extrato comprado em julho de 2016 durou até janeiro deste ano. Em
junho, conseguiram uma nova leva do medicamento via governo do Distrito
Federal. O lote durou 4 meses. Atualmente, a família está aguardando os
trâmites para receber mais CDB.
“A gente faz de tudo para que não falte medicamento. A melhora foi muito grande pra minha filha”
“Quando o governo não cumpre, o juiz bloqueia o dinheiro deles e
fornece [a verba] para comprarmos diretamente. Mas é um processo que
dura meses. Aí a gente faz rifa, já fizemos duas na internet. Já usamos
óleos clandestinos. A gente faz de tudo para que não falte medicamento. A
melhora foi muito grande pra minha filha”, relata.
O que diz a legislação?
No Brasil, só é possível usar legalmente a maconha para fins medicinais
com autorização da Anvisa, que, com a resolução RDC 17/2015,
regulamentou a importação de produtos à base de canabidiol.
De acordo com as normas, o paciente precisa apresentar três documentos:
receita médica, relatório médico e termo de responsabilidade e
esclarecimento.
Em dezembro de 2014, o Conselho Federal de Medicina (CFM) restringiu a
prescrição de CBD a áreas da neurologia e psiquiatria. Mas muitos
médicos prescrevem o CBD com base na resolução 38, do Ministério da
Saúde. A regulamentação permite “o uso de medicamentos em pesquisa com
resultados promissores”. No relatório médico, deve constar uma
fundamentação médica que comprove a necessidade do uso de produtos à
base de CBD e/ou THC. O termo de responsabilidade e esclarecimento é um
documento que o profissional e o paciente assinam se responsabilizando
pelo uso de um produto não registrado no Brasil e sem a avaliação da
Anvisa, se comprometendo ao uso estritamente pessoal.
No site da Anvisa, há um passo a passo para solicitar o produto.
E o que pode mudar?
Atualmente, tramita no Senado uma Sugestão Legislativa, a 25/2017, que
visa à descriminalização do cultivo da maconha para uso pessoal. A
proposta, cujo relator é o senador Sérgio Petecão (PSD-AC), foi de
iniciativa popular através do portal e-Cidadania, e atualmente está em
consulta pública. No dia 26 de outubro, aconteceu uma audiência pública,
em Brasília, para se discutir a questão.
Também está em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a
relatoria da Ministra Rosa Weber, a Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) 5708, que questiona a atual Lei de Drogas – que institui o
Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas.
A ADI é de autoria do Partido Popular Socialista (PPS) e foi feita com o
auxílio técnico da AMA+ME. A ação propõe a descriminalização da
cannabis para fins medicinais e solicita à justiça “uma medida cautelar
em caráter de urgência, para assegurar o plantio, cultivo, colheita,
guarda, transporte, prescrição, ministração e aquisição destinada para
os referidos fins da ação principal (o uso medicinal)”.
A iniciativa divide opiniões entre as organizações que militam por uma
reforma na Política de Drogas. Alguns temem que o STF rejeite a ação e
que isso desencadeie retrocessos na proposta que está em trâmite no
Senado ou no que já foi conquistado no país em relação ao uso de
cannabis.
Maurício Sullivan, coordenador jurídico da AMA+ME, especialista em
Direito Constitucional e um dos advogados responsáveis pela redação da
ação que está no Supremo, afirma:
“Se isso [a possibilidade de o STF rejeitar a ação] é uma preocupação
pra mim? Sem dúvida. Eu quero que as pessoas tenham acesso ao
medicamento canábico. Eu quero que as pessoas possam realizar o
tratamento que elas necessitam. Se esse fantasma da decisão desfavorável
existe? Ele existe! Se eu penso nele? Penso! Se eu acho que ele vai
acontecer? Eu acho que não!”.
Recentemente, a Anvisa informou que está preparando um protocolo
técnico que será disponibilizado para consulta pública, com o intuito
de, até o fim do primeiro semestre de 2018, regulamentar o plantio da
cannabis para pesquisa e produção de soluções medicinais.